terça-feira, 18 de abril de 2000

Coluna da MARCELA GODOY



O mérito das ideias no processo de composição

Quase todo mundo tem uma ideia para uma estória.

É muito comum ouvir alguém dizer que tem uma ideia para trabalhar, organizar, esquematizar, dividir... Mais comum ainda é ouvir de alguém um pedido de opinião sobre uma determinada ideia; aquela conversa de sempre “é só uma ideia ainda, mas o que você acha?”...

A verdade, no entanto, é que nem todo mundo consegue atravessar o abismo que há entre ter uma ideia e concretamente transformá-la em algo. E quando isso acontece, tendemos a, naturalmente, projetar sobre a ideia o êxito, ou o fracasso, na sua execução.

Bem, eu tenho uma forte opinião sobre isso: eu não acredito em ideias. Não acredito, sinceramente, que existam ideias boas e ruins. Não faço qualquer tipo de juízo de valor sobre qualquer ideia que seja.

Muita gente vai dizer que estou sendo radical, mas sempre acreditei (e defendo) que uma ideia não tem valor nenhum. Calma... Antes que a sessão de apedrejamento comece, convido-os a relembrar o título deste artigo, para que o contexto dessa afirmação não se perca: estamos falando do mérito das ideias no processo de composição. Ou seja, quanto vale uma idéia, como ideia somente, na composição da sua estória?

Uma ideia, literalmente, é a representação mental de algo e, neste sentido, a menos que sejamos capazes de ler pensamentos, tal representação, em sua forma original (mental representativa), não tem qualquer valor, e não o tem por uma razão muito simples: não existe! Em outras palavras, neste contexto, uma ideia é uma porção de coisa nenhuma para qualquer pensante que não o pensante que a concebeu, e, assim sendo, como se pode fazer qualquer juízo de valor sobre algo que não existe?

É por isso que, pessoalmente, não me apego e pouco me interesso em conhecer as ideias.

Francamente, não dou atenção nem às minhas próprias!

O que me move e me atrai é a execução: é a transformação, a metamorfose pela qual passam as ideias para que, enfim, venham a se tornar algo passível de nossas impressões, sensações, opiniões, algo que nos permita concretamente extrair algum tipo de experiência a respeito.

É na execução de uma ideia que o autor consegue imprimir valor a ela.

Neste sentido, uma ideia boa mal executada se transforma numa ideia ruim! Ao passo que uma ideia ruim executada de maneira interessante, transforma-se numa ideia boa!

Você não tem como saber de fato o valor da ideia que teve para sua estória até que ela se transforme concretamente na estória que você idealizou.

Uma ideia não é um fim em si mesmo, mas um meio, uma fase dentro de um processo maior.

Nada mais.

Se por um lado é desanimador descobrir que uma ideia é a mesma coisa que ideia nenhuma, ninguém haverá de negar o quão tentador seria provar que esta é uma teoria idiota, que as ideias têm valor, existem e podem ser boas! No entanto, paradoxalmente, estamos presos num loop perpétuo, já que não experimentamos o valor de uma ideia, mas sim o valor de sua concreta aplicação.

Onde quero chegar com tudo isso?

Na sua caneta.

Você tem uma ideia?

Acha que é uma boa ideia?
Prove isso. Escreva!

Transforme sua ideia na minha experiência.

Permita ao outro conhecer sua ideia não por meio de uma abstração à qual não se tem acesso – por ser inalcançável a todos ao existir apenas dentro de você! – mas por meio das sensações, das impressões e das experiências que só poderemos trocar concretamente se a sua ideia passar a existir como coisa.

E uma estória é uma coisa.

Uma coisa feita de ideias...


5 comentários:

  1. tem razão. a execução sempre é o lugar mais atrativo pra conclusão (ainda) da tal idéia que não existe.

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  2. Mais um espetacular texto de Marcela Godoy!
    Assisti a palestra no Riocomicon e fiquei fascinado o quanto de desconhecimento os aprendizes de desenhistas tem hj em dia e o quanto didáctica até mesmo para estes Marcela consegue ser e passar as mais complexas das idéias = )

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  3. Acho que vou seguir seu conselho... mas é só uma ideia!

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  4. Que saudade de você, mestra! Pena que nosso reencontro venha a ser por um post. Não foi só a saudade que me fez comentar esse texto. A questão é: não concordo. Vejo muitos pontos interessantes e verdadeiros no que diz. Mas dizer que a ideia não tem valor é, no meu ver, um belo exagero. Afinal, uma má ideia bem desenvolvida se transforma numa má ideia bem desenvolvida e só, nunca numa boa ideia.
    E o fato de a ideia estar num plano onde somente o seu autor acessa, basta você ter umas duas horas, talvez, e esse autor pode te entreter com uma bela e interessante história, mesmo que você veja falhar na sua criação, vai te fazer pensar sobre.
    Acredito que a ideia é "apenas" o começo de uma obra. "Apenas" a essência, a semente. Uma árvore que nasceu de uma má semente pode até ser bem decorada e produzida, mas sempre será uma má árvore.
    Enfim, deixei minha opinião sobre o assunto. Obviamente ninguém está certo ou errado nessa história, apenas criaturas brincando de criadores.
    Grande beijo!

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  5. Iuri, querido! Revê-lo foi mesmo uma grande satisfação! E contar com sua contribuição, na sala de aula ou no blog, é sempre um grande prazer! Fico feliz que você tenha discordado, afinal, a idéia é, entre outras coisas, "provar que esta é uma teoria idiota". Espero revê-lo em breve! De preferência, na sala de aula! Grande beijo e fique com Deus,
    Marcela.

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